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Memórias Indigeríveis - Parte I


O celular ao tocar “Smash into you” o acordara logo cedo fazendo seus olhos quase que entreabertos procurar pelo aparelho que se encontrava ao lado de sua cama em seu criado-mudo. Não sabia exatamente o que estava fazendo, apenas queria que aquele som parasse e que tudo isso fosse apenas um pesadelo, pois sucumbia todas as manhãs só de ter que sair do aconchego de sua cama para encarar o frio delirante das manhãs de agosto. 

O desejo imenso de permanecer imóvel e em formato de concha sobre os edredons que o envolviam era maior do que a responsabilidade de levantar e fazer sua rotina matinal para poder chegar até a tão esperada escola. Era torturante encará-lo assim que levantava. Cabelo bagunçado. Cara inchada. Olhos orientais, visto que o sono impedia que abrisse mais os olhos devido o peso da sonolência que ainda se continha. Fisionomia indiferente perante a qualquer pessoa ao levantar-se da cama todos os dias pela manhã. E como se não bastasse, desejava mais que tudo voltar imediatamente para cama enquanto seguia seu trajeto até o banheiro se escorando pelas paredes e móveis pelo caminho.

Entrava no banheiro com toalha no ombro, shampoo e condicionador na mão esquerda e na direita espuma e aparelho de barbear. O dia estava apenas começando e seu ânimo não era invejável. Colocava tudo o que carregava sob o balcão da pia do banheiro e ligava o chuveiro com desconfiança da água estar em primeiro momento gélida o bastante para despertá-lo imediatamente. Atento para saber que o dia estava apenas começando e que a trajetória seria longa. Entrava embaixo do chuveiro e deixava a água a mais morna o possível para ter um banho agradável e ir se desprendendo da cama e do sono aos poucos.

Entretanto, era o momento que tudo bombardeava sua mente. Pensava no passado como um velho amigo que se foi e que apenas escrevia cartas fazendo questão de enviá-las via Sedex todos os dias para o mesmo endereço. Lembrava-se dos acontecimentos que o ingeriam e faziam de sua vida uma longa tortura, pois o passado também colocava armadilhas em suas inúmeras “lembranças” que enviava via Sedex. Porém, eram essas armadilhas que o ensinavam a não abrir certas “lembrancinhas” do tão insistente presente, que estava sempre ao seu lado e com situações novas a cada momento. E sem esquecer-se de seu amigo distante futuro, que apesar de nunca aparecer, sempre era irreconhecível e ao mesmo tempo misterioso o bastante para deixar todos que o conheciam cheio de dúvidas.

Mas o passado era o que mais estava lhe incomodando no momento, trazia memórias ruins e atormentava-o noite e dia por algo que ele levou anos para fazer e não fez. Resumidamente, uma história de amor sem final feliz. Aliás, essa história de FINAL FELIZ só existe em contos de fada. Ninguém quer ter um FINAL FELIZ, todos querem ser FELIZES PARA SEMPRE. Essa é a lógica! O que mais lhe incomodava era ter tido a chance de encontrar seu grande amor e nunca ter lhe dito nada, pois sentira medo de ouvir pronunciar de seus próprios lábios: Eu amo você!

Medo que hoje se tornou mais frequente e fez da intolerante pressa por diversão, um segundo plano. Começou a se esconder atrás de suas manias incontroláveis de ignorar tudo o que não lhe convinha e devolver de forma “phyna” (uma forma mais sutil de se referir as pessoas, mas mantendo a alta diversidade das palavras como base para uma boa resposta à ofensa) tudo o que lhe fosse tido como modo de provocação. Dedicou-se aos estudos e esqueceu que também merece viver, colocando tudo o que tanto desejava em segundo plano, apenas estudou, estudou, estudou...

Desligando o chuveiro e se enxugando em sua toalha, ele saía do box bem mais atento, só que agora sem o sono e o desejo imenso de voltar para a cama. Parava sempre em frente ao espelho e ficava torcendo incansavelmente para que não houvesse nenhuma imperfeição em seu rosto, para assim ir tranquilo para a escola sem medo de futuras brincadeiras por algo do gênero. Entretanto, sempre que se deparava com o espelho sentia-se inferior e sua autoestima apenas diminuía cada vez mais com as tentativas em vão de tentar esconder tal imperfeição que tanto o incomodava. Mal sabia ele que cada pontinho que consideramos feio em nós mesmos, é o que nos torna únicos e faz de cada um o que é. Esconder isso só faz você esconder algo que você é.

Enfim, chegava uma das partes mais torturantes e consideradas até então masoquista: fazer a barba. Fazia sem caretas e sem aparentar dor, o sangue escorria de seu rosto e pingava sobre o lavatório da pia do banheiro. Mas mesmo assim continuava, sentia prazer em saber que ao terminar teria um rosto sem vestígio algum da barba. Um futuro amante da própria imagem e que buscava perfeição no que Deus já havia construído perfeito. E de novo: mal sabia que tudo o que fazia era querer mudar a si mesmo e aos outros. Na verdade não sabia de nada, levava a vida como se tudo tivesse que ser daquela forma. E não era.

Ao terminar, lavava o rosto e seguia rumo ao quarto para se trocar. E seu dia a partir daí seguia igual o de qualquer pessoa normal. Pessoa normal? Sim, nosso querido personagem tinha um diferencial que o tornava único perante os que o rodeavam, era um escritor. Mas não um simples escritor daqueles que escrevem por profissão, e sim, um escritor que gostava de dar vida a simples fatos e valorizar o que a escrita não conseguia interpretar, como os sentimentos.

Confuso(a)? Ok, tentarei ser mais objetivo em relação ao nosso querido personagem, de características peculiares e de mente delirantemente brilhante. Brilhante no modo de raciocinar de forma diferente. Expor o que pensava causava certo receio aos que o circundava, por conta de dizer coisas brilhantes o bastante para serem interpretadas por algumas pessoas. Chamavam-no de esperto, inteligente, nerd e seus sinônimos, mas nada que ele acatasse como codinome para ter créditos pelo que fazia. Apenas a satisfação por ser reconhecido o tornava uma das pessoas mais sorridentes desse mundo. Egocêntrico? Talvez. Ou não tivesse conhecimento o bastante para identificar tal problema. Se é que podemos chamar de problema.

Excêntrico o bastante para causar nos amigos mais próximos ataques de risos espontâneos e brincadeiras tolas para poder chamar de "Pré-escola". Uma criança presa no corpo de um adolescente. Porém, tinha suas responsabilidades que levava a sério mais que tudo e que deseja sempre cumpri-las de acordo com o seu modo “irônico” de pensar. Apesar de se divertir, compensava as horas de diversão com compromissos em dobro. Sempre preocupado, sempre com a mente atenta. Era praticamente uma agenda eletrônica, estava sempre alerta para ver o horário e ver se havia compromisso.

E assim se tornou o nosso detalhista, excêntrico, alegre, espontâneo, criativo, chato, masoquista, esperto e enigmático escritor de sentimentos.


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